A histórica revista Placar criou em 1970 o prêmio ‘Bola de Prata’, que se tornaria a maior honraria do futebol nacional – atualmente o prêmio é oferecido pela ESPN. Por décadas os atletas aguardavam ansiosos por suas notas e sonhavam em levantar o troféu de melhor jogador de sua posição. No entanto, havia também outras eleições, digamos, menos desejadas. Foi justamente uma dessas que elegeu o volante argentino Mancuso, ex-jogador do Flamengo, o jogador mais violento do futebol nacional em 1994. E ele ficou “pistola” com isso. Entenda!
A revista justificou o pleito com sua “preocupação com o crescente número e cartões amarelos e vermelhos” e colocou a equipe de repórteres, coordenada pelo redator-chefe Alfredo Ogawa, para caçar os votos de atletas do Brasileirão.
Mancuso, um volante viril de passagem anterior pelo Palmeiras – e que nos últimos anos foi visto com frequência quase que como um guarda-costas de Diego Armando Maradona, até a morte do amigo em 2020 – superou na eleição o gremista Dinho, e os corintianos Bernardo e Marcelinho Carioca.
O argentino não gostou nada do “prêmio” e se disse perseguido por ser estrangeiro: “A gente carrega a fama de violento, só que é preciso ver que o futebol mudou”.
Na ocasião, seu principal desafeto era ninguém menos que o Animal. “Além de desleal, Edmundo é provocador”, cravou Mancuso.
Reproduzimos abaixo, na íntegra, a reportagem sobre a inglória eleição de Mancuso como jogador mais violento do futebol brasileiro. Confira:
“É pau puro
Com esse pessoal, não tem moleza. Eles venceram a pesquisa PLACAR na base da porrada e do chutão
Diante do festival de cartões amarelos e expulsões do atual Campeonato Brasileiro, muita gente reclama do excesso de rigor dos árbitros. Quem ouve as lamentações de técnicos e jogadores quase acredita que 936 cartões amarelos e 148 vermelhos em 168 partidas* seria um exagero dos juízes. Só que o trabalho frenético dos árbitros é reflexo da pancadaria que corre solta nos gramados do país ” e os boleiros sabem bem disso. Aliás, sabem também quais companheiros têm predileção pela canela alheia. Para chegar ao nome dos mais violentos, PLACAR realizou uma pesquisa exclusiva e inédita na sua abrangência. Ouviu onze atletas de todos os 24 times do Brasileirão 96. Foram 264 votos no total. Entre os oito mais votados, apenas Marcelinho Carioca, do Corinthians, não quis participar. No pleito, ninguém precisou se identificar, para evitar retaliações. Houve aqueles que justificaram a sua escolha, como o volante Moisés, do Botafogo. “É um cara sujo, pilantra”, dispara Moisés, que lembra uma partida em março deste ano contra o personagem. “O Uidemar (meia do Bota) não podia tocar na bola que o cara dava um “güenta” em cima.” O alvinegro tem certeza: “Esse só entra para quebrar”.
Moisés fala de Alejandro Victor Mancuso, volante do Flamengo, e escolhido o jogador mais violento do Brasil. O argentino recebeu 36 votos (13,6% do total), seguido de perto pelo gremista e também volante Dinho, com seus 29 votos (11%). Logo depois aparecem, pela ordem, Bernardo, do Corinthians, Nélio, do Flamengo, e Marcelinho Carioca, outro corintiano. No tosco mundo dos batedores, cada um representa seu “tipo” de violência, da porrada pura à mais desleal cotovelada no rosto (veja destaques na reportagem).
Mancuso pode até não concordar com a eleição – e ele esperneou quando soube do resultado -, mas ninguém dirá que foi uma escolha gratuita. Seu nome foi citado por jogadores de doze clubes. Uma explicação? Para ele, existe preconceito contra atletas estrangeiros, principalmente os argentinos. “A gente carrega a fama de violento, só que é preciso ver que o futebol mudou”, afirma o volante. “Hoje em dia, jogador que não for viril dança dentro de campo.” O atleta não ser “viril”, isso Mancuso ainda desculpa. Agora, não venha a se meter a besta na frente dele. Viu, Edmundo?
Na goleada Vasco 4 x Flamengo 1, no mês passado, o “Bacalhau” resolveu sacanear e, com a bola nos pés, chamou Mancuso para o drible. Levou uma senhora paulada e, no chão, ouviu os gritos do argentino: “Seu m…! Seu m…!” “Além de desleal, Edmundo é provocador”, explica Mancuso. “Tenho sangue nas veias e não aceito humilhação.” Mancuso ainda reclama que ninguém criticou com tanta veemência uma entrada violenta do atacante que acertou o joelho esquerdo de Sávio. “Se fosse comigo, o Edmundo estaria f…”
O vascaíno lamenta a briga. “Até esse jogo nós éramos amigos.” afirma. “Eu fico triste em saber que ele levou o problema para fora do campo.”
Há quem defenda Mancuso. Por exemplo, Dinho, o segundo colocado na votação, não vê nada de mal no jogo de Mancuso, nem no dele. “Dizem que futebol de força e raça é feio”, afirma o volante gremista. “Sinceramente, eu acho muito bonito.” Seu mestre nos tempos de São Paulo não pensa assim. “Sempre falei para o Dinho jogar futebol e esquecer a pancadaria”, lembra o técnico Telê Santana. “Alguns jogadores fazem faltas demais porque não são corrigidos pelos treinadores.”
Bem, não será por causa das broncas de Luís Felipe, chefão do Grêmio, que Dinho vai acertar mais a bola e menos as canelas adversárias. Felipão anda até chateado com a situação do volante, criticado a toda hora. “O Dinho ficou marcado como jogador desleal e não está rendendo como antigamente”, diz. O técnico alerta para as diferenças entre um cara arrojado e outro maldoso. “Dinho e Mancuso dividem a bola com vigor e eu acho isso ótimo.”
Os dois têm outra coisa em comum. Ambos são volantes, a posição que se tornou um símbolo de pancadaria no Brasil. Entre os 37 jogadores citados nada menos que catorze atuam na posição. Enquanto isso, antigos sinônimos de carnificina como os zagueiros “elegeram” onze representantes. E tem mais. O grupo dos volantes recebeu 44% dos votos, enquanto todos os beques ficaram com 12%.
“Nós temos o dever de neutralizar a jogada adversária quando ela começa a se tornar perigosa”, justifica Dinho. “Se o lance fica para o zagueiro, pode ser muito tarde.” Sob o nome pomposo de volante de contenção, um cabeça-de-bagre tem a chance de virar ídolo à custa de rasteiras e carrinhos por trás. Santificado pela torcida corintiana, Marcelinho Carioca tem sua faceta menos caridosa revelada na pesquisa. O meia recebeu dezesseis votos – nove deles só entre jogadores do Bahia e do Vitória. Um zagueiro rubro-negro explica por que o meia é tão popular em Salvador.
“Marcelinho dá cotoveladas e pontapés nos adversários quando o juiz não está olhando”, afirma o beque. “Ele só é atleta de Cristo fora do campo”, disse um atacante do Bahia, que enfrentou o corintiano defendendo outras equipes. Deve ser coincidência, mas outro baiano, o lateral palmeirense Júnior, quase virou moqueca quando Marcelinho acertou uma voadora na sua perna, no último Paulistão. “Na hora não tive dúvidas. Marcelinho veio na maldade”, conta o lateral, que ouviu as desculpas de praxe. “Ele disse que não teve intenção.”
Faltas escandalosas como essa deixam suas marcas, mas o que também incomoda é a dissimulação de outros votados. Lembra a cena de um jogador que aproveita o choque com o adversário e patola à plena força? A vítima aos gritos era Luiz Fernando, do Cruzeiro. O patolador era Nélson, que, junto com Nélio, do Flamengo, cultiva a fama de jogar sujo ” o que lhe rendeu votos em Goiás, Paraná, Santa Catarina… “Zagueiro irritante é aquele que fica puxando pela camisa, fazendo ameaças e batendo na maldade”, classifica o atacante palmeirense Luizão. Diante de malas do gênero, não se deve partir para o revide.
Goste-se ou não, a solução passa pelos árbitros. Eles conhecem a turma da paulada. “Sempre que posso, assisto aos jogos em casa e marco as características dos jogadores”, conta o juiz Márcio Rezende de Freitas. “Por isso, antes da partida, vou logo avisando que comigo eles não vão repetir as mesmas cenas.” Se não aceitarem o aviso, o jeito é mandar cartão neles. É o que acontece neste campeonato com sua bem-vinda chuva de advertências. “Fica melhor assim”, elogia Telê Santana. “Com os árbitros coibindo mais, a violência diminui.”
Mancuso
Ilustre representante da escola argentina, Mancuso é do tipo que não perde viagem e intimida os adversários. Jogadores franzinos e habilidosos como o corintiano Souza chegam a dar água na boca no gringo. Uma boa pancada no início do jogo e o atacante abusado pensará duas vezes antes de tentar driblar Mancuso.
Marcelinho Carioca
Para dezesseis jogadores ouvidos por PLACAR, Marcelinho é o autêntico santo do pau oco. Atleta de Cristo e dono de uma arte refinada, ele é capaz de virar bicho num jogo. Não é do tipo de bater a toda hora, mas quando resolve começar é bom sair de baixo.
Nélson
Assim como o atacante Nélio, do Flamengo, o vascaíno Nélson faz o estilo bandidão. O volante não se notabiliza pela pancada, mas sim pela maldade. Em qualquer jogo, contra qualquer adversário, Nélson deixará sempre um cotovelo, uma perna. Nenhum jogador do Fluminense foi citado. Também, o time não bate, só apanha.
Dinho
O gremista age como se fosse uma espécie de “batedor” do futebol-força tricolor. É ele quem dá a primeira botinada no adversário, como se estivesse explicando de que forma se joga no Sul. A especialidade de Dinho é o carrinho frontal com os dois pés.
Bernardo
O volante corintiano adota o estilo “cavalão”. Não está entre os mais cruéis do país, só que bate sempre. Mesmo quando acerta a bola, Bernardão continua o movimento e faz um strike dos adversários. Do jeito que vai, jogo sim, jogo não, ele assistirá ao Timão pela TV por estar cumprindo suspensão.
Júnior Baiano
Ok, Júnior já deu uma cotovelada no zagueiro Gilmar, tesouras em muita gente, distribuiu pancada de todo tipo. Os últimos tempos, no entanto, mostraram que o becão andava até meio “light” e longe de fazer parte do clube dos açougueiros. Entrou na votação mais pelo passado, ainda que a fama não seja injustificada”.